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História Viva “Um ano do História Viva e o Dia do Historiador”

Victor Coelho

Texto editorial do programa História Viva do dia 21 de agosto de 2021,com nota de solidariedade ao prof. Carlos Zacarias (UFBA) 

Dia 19 de agosto, comemoramos o dia do historiador. A data sempre se torna mais importante em momentos como este em que estamos passando no país. Todo projeto autoritário de poder implica necessariamente a tentativa de controle do que as pessoas dizem e, nesse sentido, o que se diz sobre a história tem sempre papel estratégico. Escrever e falar sobre a história implica discutir nossa identidade coletiva, nossas referências em termos de exemplos, valores e também de problemas, demandas, ausências. Há quem não goste de politizar o passado, e essa é uma postura legítima, inclusive para evitar anacronismos – que é a postura de projetar coisas do presente no passado e vice-versa. Mas os momentos de crise política acabam deixando mais evidente que grande parte da discussão histórica se alimenta de questões e dilemas centrais do nosso presente.

Há quem ache que essa mistura de motivação e produção de conhecimento é ilegítima por si mesma. Isso, na verdade, é um engano ainda firme no senso comum. Qualquer conhecimento científico tem, como ponto de partida, questões postas no presente em que vivemos, representam demandas para melhoria da vida comum, solução de problemas. A neutralidade científica, ou melhor dizendo, imparcialidade, não implica anulação da personalidade e das motivações, implica sim a condução transparente da pesquisa, dos referenciais teóricos e metodológicos escolhidos, o problema que motiva a pesquisa, as fontes e referências utilizadas, os resultados esperados, debate com a comunidade acadêmica e exposição ao público. E é exatamente nesse último ponto, a exposição ao público, que a ciência vem falhando, mas, vem também buscando melhorar.

Este é o papel do programa História Viva: o de divulgação do conhecimento histórico profissional e da experiência dos e das profissionais da disciplina em nosso estado.

Ao mesmo tempo, desde sua proposta inicial, o História Viva nunca se furtou ao debate político, essencial para a construção de uma sociedade mais democrática e menos injusta que a que temos.

Enquanto os profissionais de todas as áreas de conhecimento estavam ausente do debate público, seja pela falta de tempo, seja pela falta de repercussão pela, mídia tradicional em geral, das iniciativas existentes, os grupos políticos de extrema-direita, ao redor do mundo, ocuparam seu espaço próprio. Continuam não só alimentando o senso comum da neutralidade como também atacam a ciência e os historiadores em especial.

No que diz respeito à historiografia profissional, há um tempo construiu-se um compromisso com a defesa de uma sociedade democrática e uma visão democraticamente orientada da história, ou seja, uma historiografia que pluraliza o que se entende por história e agentes históricos.

Essa postura é hoje atacada como “militância esquerdista”, e esse rótulo serve para o reforço de construções elitistas da história, quando não negacionistas, servindo-se, contudo, e de forma seletiva, do conhecimento histórico produzido de forma profissional pelos mesmos acadêmicos que eles atacam.

Apropriando-se cinicamente da ideia de que seriam “rebeldes” e colocando a história profissional do lado do “sistema” contra o qual eles lutariam, a nova direita vem produzindo uma autointitulada história paralela do Brasil. Sua narrativa afirma que a esquerda teria construído uma hegemonia cultural nas últimas décadas e, agora, caberia aos verdadeiros patriotas se lançarem à guerra cultural.

Longe de ser algo caricato, esse discurso de extrema-direita vem se consolidando como substrato ideológico que fundamenta governos autointitulados iliberais, tal como o atual governo da Hungria, que vem suprimindo mecanismos de democracia e estabelecendo controle autoritários obre a universidade. O chamado “combate à ideologia” virou moda nos últimos anos.

Em 2018, além de ter “tuitado” ameaçando o STF, o general Villas Bôas não só deu entrevista para falar de política como destacou o que ele via como perigos da “ideologia de gênero”, da “ideologia ambientalista” e da “ideologia” de uma maneira geral, se referindo a todos que se localizam no campo da esquerda. Em julho de 2011, um terrorista, chamado Anders Breivik, assassinou 76 jovens do Partido Trabalhista norueguês e justificou o ato como um combate ao que via como “infiltração muçulmana” e expansão do “marxismo cultural”.

Como muitos analistas vêm apontando, o termo “marxismo cultural” resume vários elementos que a extrema-direita vê como negativos, como multiculturalismo, feminismo, antirracismo, agenda LGBT e demais pautas políticas visando à ampliação de direitos civis e justiça social. O termo “marxismo cultural” realimenta o clima de guerra fria, agora colocado como luta do ocidente cristão e livre contra aqueles que querem subverter os valores da sociedade, e tal luta significa sobretudo uma luta interna em cada país. Ou seja, a extrema-direita alimenta uma divisão entre amigo-inimigo no seio da própria sociedade, o que é o fundamento por excelência do pensamento fascista.

Embora também ataque o que chama de “globalismo”, a extrema-direita é ela mesma, hoje, conectada internacionalmente. Essa conexão pode ser em torno de lideranças ideológicas, tais como Steve Bannon, amigo da família Bolsonaro. Pode se dar através de contatos entre grupos, partidos e governos, tais como no caso das recentes fotos sorridentes que membros do governo Bolsonaro tiraram com Beatrix von Storch, deputada da Alternativa para Alemanha (AfD), partido de extrema-direita alemão. E essas conexões se dão, sobretudo, no nível das ideias, da ideologia.

Não é à toa que, no clima neofascista atual, alguns analistas vêm destacando a obra de Victor Kemplerer, LTI: a linguagem do Terceiro Reich, originalmente publicada em 1947, pouco tempo depois da queda do nazismo. Refletindo sobre como os nazistas haviam conseguido criar uma espécie de novilíngua, partilhada pela sociedade como efeito das técnicas de repetição, Kemplerer lembrava que a língua pode conduzir o sentimento, dirigindo nossa mente “de forma tão mais natural quanto mais eu me entregar a ela inconscientemente. O que acontece se a língua culta tiver sido constituída ou for portadora de elementos venenosos? Palavras podem ser como minúsculas doses de arsênico: são engolidas de maneira despercebida e parecem ser inofensivas; passado um tempo, o efeito do veneno se faz notar”, dizia Klemperer.

Embora os empreendedores responsáveis pelo canal empresarial Brasil Paralelo recusem relações político-ideológicas com a família Bolsonaro ou com o guru de extrema-direita Olavo de Carvalho, consta-se que, em setembro de 2017, divulgaram em suas redes um vídeo dedicado ao “marxismo cultural”. Nele, um escritor conservador, Percival Puggina, usou os termos “infiltração”, “tomada de posição” e “invasão” para se referir ao que vê como amplo domínio ideológico da esquerda nos cursos de história, tendo tal “invasão”, segundo ele, o objetivo de “cumprir uma missão partidária”. O escritor elabora então uma polarização entre, de um lado, “marxismo que produz a divisão” e, de outro, o “cristianismo que aponta para a paz”.

A retórica sobre uma divisão da sociedade serve exatamente para produzir essa divisão, e qualquer visão ou teoria social crítica é resumida no rótulo negativo de marxismo, que por sua vez simboliza todo o pensamento inimigo da civilização. Ao final do vídeo, o escritor ainda afirma que as tribos indígenas brasileiras seriam “atrasadas” e não haveria porque vermos como negativo um processo de evangelização para que elas sejam inseridas numa “civilização superior”. Há quem ache que aquelas palavras proferidas seriam exemplo de “imparcialidade” e “apartidarismo”.

Segundo o portal Metrópole, em matéria publicada ontem, esses termos – imparcialidade e apartidarismo – foram utilizados pelos donos da empresa Brasil Paralelo para fundamentar notificações judiciais endereçadas a historiadores que têm a ousadia de falar mal desses jovens empreendedores. Segundo a notícia, no ano passado a historiadora paranaense Mayara Balestro lançou um livro sobre o Brasil Paralelo. Tanto ela como a própria editora, além da equipe que participou do livro, receberam notificações.

Mês passado, foi a vez do historiador e professor da UFBA Carlos Zacarias receber uma notificação por ter feito crítica direta ao Brasil Paralelo, ao protestar em sua rede social a inclusão de material do canal paralelo como parte de material didático pela secretaria de estado da Bahia. Assim, a ANPUH-MA se solidariza com os colegas de profissão e repudia esses atos de intimidação.

Terminamos relembrando também que, dias atrás, outro general golpista recolocou o negacionismo sobre a ditadura de 1964.

No últimos ENEN, a comissão formada pelo governo vem bloqueando o uso do termo ditadura sugerindo o de “regime militar”. Recordamos também que, nesses dias de governo Bolsonaro, temos nova ofensiva genocida contra os povos indígenas, genocídio esse justificado por critérios de “atraso” e “progresso”.

Enfim, o momento, mais que nunca, é de união em torno dos valores democráticos e plurais e em defesa da nossa profissão e de nosso dever profissional.

Sobre o autor

Victor Coelho

Professor do curso de Licenciatura em Ciências Humanas-História do Centro de Ciências Humanas, Saúde e Tecnologia de Pinheiro - CCHNST/UFMA e do Programa de Pós-Graduação em História - PPGHIS/UFMA. Possui graduação em História pela UFMG, é Mestre em História e Culturas Políticas pela UFMG e Doutor em História Social da Cultura pela PUC-Rio na linha de pesquisa Teoria e Historiografia. Atua nos campos da História Moderna e Contemporânea, Teoria da História e Historiografia e História do Brasil República; desenvolve pesquisas no campo da história intelectual, história dos conceitos nos séculos XX e XXI;

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