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AS MORTES DE ONTEM E HOJE

Por Igor de Sousa*
23/06/2021

Não escrevo esperando ser compreendido na plenitude do que expresso. Escrevo como alguém atravessado pela dor, mas ao mesmo tempo consciente que as memórias devem animar compromissos com o hoje e o amanhã. No debate atual brasileiro muito se tem ventilado sobre alianças e possibilidades de “reconstrução nacional”, um “pacto de democratas” que traria o Brasil ao seu bom e saudoso momento de esplendor dos períodos lulistas. Gostaria de lançar mão sobre alguns aspectos, para em seguida formular o que tenho chamado de política do marco zero.

Em uma política de frente ampla sempre não cabe alguém, e pasmem, falo de lutadores e lutadoras. Em uma política de frente ampla, se privilegiam elites, elites regionais e locais. Eu não sei quanto a vocês, mas no Maranhão se vive assombrado com esta constante possibilidade, repetida tantas vezes que já é parte do jogo. Elites locais e regionais são constantemente rearranjadas por apoios e acordos nacionais. Coração de mãe sempre cabe mais um. Hoje milagrosamente se mostram arrependidas de suas ações recorrentes de açoite e vilipendio.  Se exige um cheque em branco para que líderes carismáticos e seu séquito não repitam o que até ontem se orgulhavam, mas hoje dizem que não mais farão. Do que falo? Alianças que nos empurram para a fossa. Morte, violência, ataques a comunidades negras e indígenas no campo e na cidade.  O açoite de ontem vira um aperto de mão sacana e cínico.  Cessar fogo? É o que insistem em dizer.

Parte significativa da esquerda brasileira é medíocre e tacanha, não há nada de novo sob o sol.  Descobriu tardiamente que existe genocídio no Brasil. Sério. Se fala disso há anos, livros e mais livros escritos, passeatas, denúncias, mas só agora pronunciamentos públicos em larga escala falam disso. Por quê? Porque a morte se avizinha, circunda a vizinhança.  O crime que a Covid 19 cometeu não foi matar brasileiros, foi matar aqueles que não se esperava que morressem. Aqueles que estão salvos pelo seu bastião de privilégios. É quando a morte se aproxima que um certo clamor ganha eco. Não à toa é tão repetido e escrito por aí “fora genocida”. Mantra este que tem aquietado corações e supostamente nos colocado no mesmo barco.

Este clamor é seletivo, causado pelo medo e perdas de quem se esperava pesar na conta.  De quem se esperava uma vida digna e plena. Porém, a conta não fecha. E quem já morria e continua a morrer? Se covid 19 começou bem, vitimando europeus ricos e viajantes, rapidamente se transformou numa doença que preferencialmente mata pretos pobres, porque são os que vivem nas piores e mais degradantes situações de exploração. Recordar é viver.

Outrora, enquanto as mortes eram de negros e indígenas país afora, em chacinas, ataques, assassinatos tão repetidos, não se ouvia um pio, pior, se ouvia as mesmas reclamações e deboches sobre radicalidade infantil, fatalismo, inaptidão para a lida com palácios e negociações. O termo genocídio era apontado como impreciso, difícil de engolir. Por qual razão? Não matava parentes, amigos e vizinhos. Não matava os seus. É simples.  Mas e agora? Quando a Covid 19 faz vítimas entre a classe média e setores empresariais, quando a morte circunda, genocídio passa a fazer sentido?  Passa. É vendido como novidade por aqui. Logo por aqui? A memória é curta, curta e seletiva com as dores que merecem ser sofridas e lamentadas. As dores que valem.

Quando a morte dobrar a esquina, voltar a assombrar quem sempre assombra, se verá o mesmo silêncio estarrecedor de sempre. Essa é a política do marco zero. Quem não conta só passa a fazer parte da contabilidade quando pode ser colocado, mesmo numa posição subalterna, ao lado dos que contam.  É dureza, mas é isso. Espera-se cinicamente que se zere a conta de quem já vive há tempos no negativo, na sobrevida.  É isso que esperam que se aceite. O bem nacional, a “reconstrução”, vai vitimar os de sempre e eles sabem disso. Só esperam que você mastigue, engula e goste.

Com uma frente ampla o que se espera é recolocar o Brasil no eixo, no eixo de que as mortes, pelo menos as contábeis, não fujam do controle. Sejam as esperadas. De minha parte não darei cheque em branco para ninguém. Exijo mais de mim e de pessoas próximas. A morte assombra hoje, assombrava ontem.  A política do marco zero é mais do mesmo.  Muda tudo e tudo permanece igual.  Eis o país, seus cretinos.

https://youtu.be/2LQSFLTiwS8

*Igor de Sousa é antropólogo e cursa doutorado em Sociologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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